O texto que se segue nas próximas páginas é uma interpretação da ópera Café, concebida por Mário de Andrade como uma parceria sua com o compositor Francisco Mignone. Tendo em vista o fato de que Mignone não chegou a musicar o libreto, a pesquisa da qual esta tese nasceu tomou por base os textos e manuscritos do próprio autor (libreto, “Concepção melodramática”, marcações e demais indicações). Composta de três atos e cinco quadros, Café retrata a miséria dos trabalhadores depois da queda do preço internacional do café, decorrente da Crise de 1929, a partir de diferentes enfoques: no armazém de um porto de exportação de café, em uma fazenda cafeeira, em uma sessão parlamentar, em uma estação de trem que leva das proximidades da fazenda até a grande cidade e em um cortiço urbano. Afastando-se do realismo e do localismo, a ópera termina com uma revolução socialista em tom apoteótico. Café é enfocada aqui fundamentalmente por meio de dois conceitos: épica e engajamento. O primeiro deles, ausente no léxico do autor, é mobilizado sobretudo com base em Peter Szondi e Anatol Rosenfeld, embora apresente desdobramentos específicos ao longo da análise. O segundo constitui um dos conceitos caros à reflexão estética de Mário de Andrade, razão pela qual é articulado com base nos textos (artísticos ou não) do próprio escritor. Esta tese se inicia com o exame das indicações de Mário de Andrade a respeito dos aspectos cenográficos, distinguindo certos procedimentos afins ao espírito do drama daqueles que se distanciam dele e diferenciando, entre estes, duas linhas de força: lirismo e simbolismo profético. Em seguida, desenvolve-se uma análise da estrutura épica da ópera 1) que pondera a visão de que ela seria descontínua, hesitante ou contraditória – pois concebida por meio de dois textos de naturezas diferentes –, e busca identificar uma continuidade e um foco épico que, calcados no libreto, leve em conta a articulação deste com as indicações cênicas, coreográficas e musicais indicadas na “Concepção melodramática”; e 2) cuja matriz é o princípio sacrificial ou, mais especificamente, o ciclo de morte e ressurreição. Porém, dado que a narrativa épica absorve o inenarrável – isto é, o milagre –, uma análise limitada à estrutura épica é insuficiente. Assim, expõe-se, finalmente, a questão do engajamento, que se configura como uma equação – passível de ser solucionada de diferentes maneiras – entre três elementos: o assunto, a forma e o espectador. Esse problema do engajamento se coloca na medida em que alguns procedimentos artísticos são orientados não para a função narrativa, mas sobretudo a certos modos de intervenção no público, seja convocando-o à reflexão, seja incitando-o a comportamentos morais. Neste último caso, a importância do assunto – elo fundamental de mediação social objetiva entre o artista e o público de extração popular – tende a definhar.