Neste trabalho defende-se a tese de que os povos indígenas têm assegurado o direito linguístico
a expressarem-se em suas línguas tradicionais em juízo, independentemente de terem
conhecimento da língua portuguesa ou não. Para sustentar tal hipótese, são analisados três casos
judiciais nos quais indígenas que figuram como réus e/ou testemunhas reivindicam o seu direito
linguístico a contar com intérpretes e/ou tradutores durante o procedimento judicial: o caso
Marcos Verón, da etnia Guarani-Kaiowá (MS); o caso Paulino da Silva, da etnia Terena (MS) e
o caso Nelson Reko e outros dezoito indígenas Kaingang (RS). Primeiramente, é importante
mencionar que essa parte integra a Cátedra da UNESCO de Políticas Linguísticas para o
Multilinguismo. Em todos os casos, os agentes judiciais negaram a solicitação pelo serviço de
intérpretes e tradutores sob o argumento de que os indígenas se expressavam bem em língua
portuguesa. Entretanto, a análise dos julgados indica que, ao negar aos indígenas o uso de suas
línguas tradicionais, os magistrados e deputados aplicaram o CPP desconsiderando as normas e
princípios constitucionais que asseguram direitos coletivos aos povos indígenas. Assim, ao longo
do texto, busca-se evidenciar que a Constituição brasileira de 1988 prevê, em seu art. 231, a
necessidade de respeitar os modos diferenciados de vida dos povos indígenas, o que inclui o
respeito e a proteção às suas línguas ancestrais. A nível internacional, indica-se também que o
direito linguístico ao uso das línguas tradicionais é reforçado em instrumentos específicos, tal
como a Convenção 169 da OIT (1989), a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos
Povos Indígenas (2006) e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2016).
Revela-se ainda que, na América Latina, o marco do chamado novo constitucionalismo pluralista
tem permitido um avanço no reconhecimento de direitos originários dos povos indígenas,
incluindo seus direitos linguísticos. Tais arranjos constitucionais, mais abertos à pluralidade
linguística e cultural, têm sido responsáveis por reconfigurar as relações entre o Estado, os povos
indígenas e as línguas ancestralmente faladas nesses territórios. Entretanto, foi possível perceber
que, no Brasil, apesar dos avanços conquistados, na seara penal e processual, nosso atual Código
de Processo Penal (1941) não faz qualquer menção aos povos indígenas. Com efeito, a ausência
de critérios para tratar as especificidades étnicas e linguísticas dos povos indígenas na seara
criminal tem funcionado como um real obstáculo no acesso desses povos à justiça. No entanto,
busca-se demonstrar que, apesar da lacuna jurídica, a lei processual penal precisa respeitar o
direito dos povos indígenas a usarem suas línguas, uma vez que esse é um mandamento
constitucional. Além disso, busca-se demonstrar que os conceitos de língua que fundamentam
os direitos linguísticos são distintos. Verifica-se que, enquanto para os operadores do direito, a
língua é individual serve como instrumento de comunicação, para os povos indígenas, as línguas
são pensadas na sua relação com a coletividade, com a espiritualidade e com a natureza (Baniwa,
2015; Chamorro, 2008). Por fim, para que se avance na consolidação de uma justiça plurilíngue
e intercultural, são propostos modelos de gestão da pluralidade linguística no sistema de justiça
brasileiro, são propostos modelos de gestão das línguas indígenas na justiça, incluindo ações de
registro, identificação das línguas indígenas de presos indígenas, cursos de formação e
capacitação de intérpretes e tradutores indígenas, oficiais de capacitação e conscientização dos
servidores da justiça sobre línguas e direitos dos povos indígenas.