INTRODUÇÃO –Depois da celulose, o composto orgânico mais abundante nas plantas é a lignina, um polímero formado, principalmente, pela polimerização de três monolignóis (álcoóis p-cumarílico, coniferílico e sinapílico), os quais variam no grau de metoxilação, além de uma diversidade menor de outros componentes secundários. Após a polimerização, estes monolignóis são convertidos em unidades monoméricas denominadas p-hidroxifenil (H), guaiacil (G) e siringil (S), respectivamente. Além destas unidades, o flavonoide tricin tem sido apontado como um novo monômero iniciador do processo de lignificação. Numa reação catalisada pela chalcona sintase (CHS), tricin é formado pela condensação de p-cumaroil-CoA, proveniente da via de fenilpropanoides, com malonil-CoA proveniente da via do malonato. O produto desta reação, naringeninachalcona é convertido em naringenina, pela ação da chalconaisomerase. Naringenina é oxidada pela enzima flavona sintase (FNSII) formando apigenina e, subsequentemente, luteolina, tricetina, selgine, finalmente, tricin. Além de intermediário da via de biossíntese de tricin, naringeninatem sido descrito como um inibidor da 4-hidroxicinamoil-CoA ligase(4-CL), enzima-chave da via de fenilpropanoides, a qual leva à produção de lignina nas plantas.A biomassa lignocelulósicaé considerada um recurso renovável com potencial para a produção de biocombustíveis, porém a presença da lignina, fortemente ligada aos polissacarídeos celulose e hemicelulose, limita a digestibilidade enzimática durante os processos de hidrólise. A presença detricincomo componente da estrutura de lignina poderá ampliar ainda mais a diversidade no uso da lignina como matéria-prima para diversos produtos e, possivelmente, a melhora da sacarificação enzimática.
OBJETIVOS – Diante do descrito acima, o objetivo geral deste trabalho foi investigar os efeitos de naringenina nos processos de biossíntese de lignina e de tricin, e na digestibilidade das raízes de milho. Para isso, o trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira etapa, as plântulas foram cultivadas em hidroponia por 24 horas e os ensaios realizados para avaliar os efeitos de narigenina no crescimento, nos teores de lignina e sua composição monomérica, e na formação de tricin nas raízes. Na segunda etapa, as plântulas foram crescidas por 24 horas com naringenina associada com inibidores das vias de fenilpropanoides e tricin. O crescimento das raízes, lignina e sua composição monomérica, ácidos ferúlico e p-cumárico esterificados à parede celular e a digestibilidade foram monitoradas.
MÉTODOS– Sementes de milho (Zeamays L. cv IPR-114) foram higienizadas com hipoclorito de sódio a 2% por 5 min, enxaguadascom água deionizada e germinadas a 25°C em duas folhas de papel germitestumedecido.Vinte e cinco plântulas de tamanhos uniformes foram sustentadas por uma placa de acrílico ajustável, e as raízes mergulhadas em um recipiente de vidro de 10 x 16 cm contendo 200 mL de solução nutritiva Dong(pH 6,0) sem ou com naringenina (0,1 a 0,3 mM).Inibidores da via de fenilpropanoidesforam aplicados isoladamente ou em associações com naringenina 0,2 mM. Os inibidores utilizados foram ácido piperonílico (PIP 0,1 mM; inibidor dacinamato 4-hidroxilase – C4H), ácido 3,4 metilenodioxicinâmico (MDCA 2,0 mM; inibidor da 4-CL), ácido protocatecuico (PROTO 0,5 mM; inibidor dap-hidroxicinamoil-CoA:chiquimato/quinatop-hidroxicinamoil transferase– HCT) e ácido 2,4 piridinodicarboxílico (PDCA 0,05 mM; inibidor da FNSII). Os recipientes foram mantidos em câmara de germinação (25ºC, fotoperíodo 12/12 horas claro/escuro, com densidade de fluxo de fótons de 280 μmol m-1 s-1) durante 24 horas.As raízes foram medidas antes da incubação e no final dos experimentos, e a variação do comprimento foi obtida pela diferença entre eles. A biomassa fresca foi determinada imediatamente após a incubação e a biomassa seca após secagem em estufa a 60oC.O conteúdo de lignina, as atividades da 4-CL e a digestibilidade foram avaliados por espectrofotometria, enquanto a taxa de depleção de naringenina, a composição monomérica de lignina e os teores dos ácidos ferúlico e p-cumárico foram determinados cromatograficamente (HPLC). Os testes de Dunnett e Scott-Knottforam aplicados para avaliar as diferenças entre os parâmetros e valores de p ≤ 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO– Os resultados revelaram que1) naringeninaé rapidamente depletado da solução nutritiva, um indicativo de que é absorvido pelas raízes de milho durante 24 horas. 2) Naringenina reduziuo comprimento e as biomassas frescas e secas das raízes, em comparação com os respectivos controles. Estes resultados estão em concordância com achados descritos em Arabidopsis, arroz, espinafre, alface, rabanete, tomate, cenoura e soja. 3) Naringenina aumentouo teor de lignina nas raízes, em comparação com o controle. O fato de que naringenina estimula a produção de lignina devido à redução do crescimento das raízes foi também constatado em soja. Neste aspecto, aredução do crescimento das raízes tem sido associada com a lignificação prematura das paredes celulares, o que ocorre quando a expansão celular diminui, quer quando a célula está sob estresse ou quando ocorre diferenciação como no caso do xilema. Como uma consequência do aumento da lignina, a composição monomérica também foi afetada pela naringenina, ou seja, redução dos teores do monômero G, sem alterar os monômeros H e S e soma H+G+S. Diante disso, um aumento na razão S/Gfoi notado, o que sugere um maior número de subestruturas β-O-4, mais simples, o que pode tornar os tecidos radiculares macios e passíveis de degradação. 4) Naringenina não alterou a atividade da 4-CL quando aplicada isoladamente ou em conjunto com PIP, porém aumentou a atividade da 4-CL quando aplicada em conjunto com seu inibidor MDCA. Este aumento de atividade enzimática está em concordância com a produção de lignina causada pela naringenina, que assim potencializa o efeito do MDCA. 5) Naringenina aumentou a produção de tricin nas raízes; um indicativo de que o flavonoide deve estar atuando na formação de tricin, já que ele é um metabólito da via de biossíntese do flavonoide.6) Isoladamente, PIP, MDCA, PROTOe PDCA inibiram a produção de tricin nas raízes. Quando aplicado juntamente com estes inibidores enzimáticos,naringeninarestabeleceu a formação de tricin.7) PIP, MDCA e PROTO reduziram o crescimento das raízes, enquanto PDCA não causou nenhum efeito. 8) Isoladamente, todos os inibidores enzimáticos reduziram a produção de lignina. Naringenina restabeleceu a produção de lignina quando associado com PIP, MDCA ou PDCA, mas não com PROTO.9) Com respeito à composição monomérica de lignina, os resultados mais expressivos revelam que MDCA e MDCA+NAR (naringenina) reduziram drasticamente os monômeros e, como consequência, as somas H+G+S e as proporções H:G:S, embora não tenham afetado as razões S/G; um indicativo de que, ao menos nas raízes de milho, a deslignificação não seria comprometida por este inibidor enzimático. Por seu lado, PDCA não afetou os teores de G e S, a soma H+G+S, a proporção H:G:S e a razão S/G. Entretanto, a associação PDCA+NAR aumentou os teores dos três monômeros e a soma H+G+S alterando a proporção H:G:S, o que mais uma vez reforça o papel de naringenina como crucial precursor da via de biossíntese de tricin. 10) Os teores de ácido ferúlicoaumentaram (NAR, PROTO, PROTO+NAR; PDCA e PDCA+NAR), não foram alterados (PIP e PIP+NAR) e foram drasticamente reduzidos (MDCA; MDCA +NAR). Os teores de ácido p-cumárico aumentaram (PROTO; PROTO+NAR; PDCA), não foram alterados (PDCA+NAR) e foram reduzidos (NAR; PIP; PIP+NAR;MDCA; MDCA +NAR). Finalmente, 11) o pré-tratamento alcalino das raízes revelou que, após 6 horas, a digestibilidade aumentou 12% (MDCA), 37% (PDCA) e 12% (PDCA+NAR) e foi reduzida em 26% (PROTO+NAR). Resultados similares foram obtidos após 24 horas de digestão enzimática, ou seja, aumentos de 10% (MDCA), 36% (PDCA) e 11% (PDCA+NAR) e redução de 10% (PROTO+NAR). Ofato marcante observado foi com respeito aos inibidores MDCA e PDCA; ambos aumentaram a digestibilidade, especialmente PDCA. Aumento da digestibilidade da biomassa de milho, pelo MDCA, tem sido constatado em nosso laboratório (dados não publicados), mas o mecanismo de ação é desconhecido. Não há, também, uma clara explicação para o efeito do PDCA sobre a digestibilidade. É possível que a enzima FNSII desempenhe papel crucial na deposição de lignina ligada a tricin na parede celular de monocotiledôneas, pois a deficiência de tricin é parcialmente compensada pela incorporação de naringenina na estrutura da lignina, seguido por aumento na digestibilidade.
CONCLUSÕES– Em resumo, o conjunto de resultados obtidos neste trabalho abre novas pistas quanto ao papel de naringenina nas duas vias metabólicas. Atuando como um inibidor da via de fenilpropanoides, naringenina afeta o crescimento das raízes de milho seguido por aumento de lignina e alteração na composição monomérica; uma característica relacionada à prematura lignificação das paredes celulares, e típica da ação, em geral, de aleloquímicos. Atuando como substrato da enzima FNSII, naringenina ativa a formação de tricin; um iniciador do processo de lignificação em monocotiledôneas. Neste aspecto, o papel do PDCA (inibidor da FNSII na via de tricin) no processo de produção de bioetanol a partir de milho e outras monocotiledôneas pode ser uma pista interessante a ser investigada.