O efeito de teatralidade causado na mente do leitor pela
narrativa das três encenações burlescas da segunda parte do
Quixote – “A Dulcineia encantada”, “A condessa
Trifaldi” e “A viagem de Clavilenho” – deu origem a este
trabalho. A esses episódios correspondem os capítulos
XXXIV-XLI, quando dom Quixote e Sancho passam uma temporada como
hóspedes dos duques e, sem saber, são transformados em atores
cômicos, para a diversão dos anfitriões e seus convidados.
De acordo com a perspectiva crítica de Anthony Close e de Maria
Augusta da Costa Vieira, a análise, sob a visão do cômico e
racional, partiu de dois pressupostos. Primeiro, o de que o
Quixote é uma obra de entretenimento cuja concepção deriva do
clima artístico de seu tempo, e o de que Cervantes,
paralelamente ao escritor de novelas, foi um dramaturgo
apaixonado pelo teatro. Propôs-se então que as três tramas
estão organizadas como um todo, com começo, meio e fim, sob as
diretrizes da formação de três jornadas de uma “ação
dramática”, constituindo uma unidade episódica.
Daí se infere que os três episódios se incorporam à narrativa
sob a forma da comédia, de modo diferente de tantos outros que
permeiam a obra: eles apresentam uma estrutura complexa,
possível de ser identificada com a da comédia. O enredo da
Dulcineia encantada configura o ponto de união entre a prosa e a
“ação dramática”, constituindo a primeira jornada. Os
outros dois, formando a segunda e terceira jornadas, se associam
ao primeiro unidos pelo mesmo tema, o da necessidade de o
cavaleiro ajudar as damas em dificuldades. Ao mesmo tempo, os
três episódios integram o desenvolvimento narrativo. Essa
estratégia poética, que se assemelha ao que se chama “teatro
dentro do teatro”, provoca o desdobramento da estrutura da
composição, enfatizando o tema da imitação do mundo da
cavalaria andante.
A análise, sempre relacionando texto e contexto, focaliza na
prosa os elementos estruturantes do teatro, não só as marcas
dramáticas formais, mas também os fatores que transmitem a
espetacularidade das encenações. O caminho percorrido para
atingir o objetivo, sob o aspecto da composição poética, é o
de primeiro comparar os episódios selecionados com a obra
dramática cervantina para depois relacioná-los com as
preceptivas poéticas e retóricas que circulavam na Espanha
naquele final de século, principalmente a Philosophia Antigua
Poética de Alonso López Pinciano, e Arte nuevo de hacer
comedias de Lope de Vega. Ademais, para a compreensão dos
aspectos socioculturais da narrativa, a pesquisa se apoia nos
preceitos e códigos de conduta da sociedade de corte à época
dos Áustrias, com ênfase em El Cortesano de Lluís del Milà,
bem como nos estudos, crônicas e relatos históricos sobre as
festas, públicas e palacianas.
Nesse sentido, este trabalho demonstra a coerência da leitura
dos três episódios como uma unidade episódica com começo,
meio e fim, estruturados sob a forma de uma comédia singular, o
que apresenta, dentro do cenário artístico-cultural daquelas
primeiras décadas do século XVII, um outro experimento
cervantino de uma nova maneira de contar histórias.