Esta pesquisa foi desenvolvida sob o mirante teórico da Análise do Discurso de linha francesa
(AD), com aporte nas teorias de Michel Pêcheux (2008), abordando questões referentes ao
sujeito, sentido, interdiscurso, memória discursiva, além da formação discursiva e da
formação ideológica. Também busquei conceituações em Pereira (2005) ao trazer a noção de
discurso jurídico, associada ao conceito de Muniz (2008), além de Fonseca (1999) com a qual
trabalhei com a definição de discurso literário. Quanto às condições de produção do discurso
jurídico, fiz uma interface com teorias do direito penal e da teoria da pena, buscando em
Capez (2005) e Bitencourt (2015) fazer um levante dessas condições de produção à época da
enunciação de Os miseráveis, me ancorando, ainda, em Beccaria (2014) e Suxberger (2006)
para sustentar a teoria de uma pena cujo caráter seja de prevenção especial, capaz de devolver
o ex-detendo readaptado à sociedade e que é questionada pelo sujeito discursivo Victor Hugo
na discursividade dos recortes analisados. No que tange às condições de produção do discurso
literário, busquei aporte teórico em Gonzaga (2004) e Chauvin (2014). Em relação ao recorte
metodológico, busquei em Santos (2004) a possibilidade de recortar o corpus, compondo
assim sequências enunciativas que formaram as matrizes discursivas analisadas, por meio das
quais efeitos de sentidos dos enunciados selecionados foram examinados para identificação do
processo de interdiscursividade subjacente às manifestações dos sujeitos discursivos: Jean
Valjean, Victor Hugo, as instituições e a sociedade francesa e o lugar discursivo ocupado pelo
Pai/Sr. Madeleine. Diante dessas questões teóricas, me vi interpelado por alguns
questionamentos ao reler a discursividade de Os miseráveis, quais sejam: Como era decidida a
dosimetria da pena; como era a aplicação da pena, à época da enunciação da obra, de forma a
garantir, ou não, o fator jurídico da prevenção especial? Na ausência de uma pena que
trouxesse esse caráter de prevenção especial, como a sociedade francesa lidava com o preso
devolvido à sociedade após o cumprimento da pena? Quais eram as formações discursivas e
ideológicas passíveis de inscrição pelos sujeitos discursivos que constituem a primeira parte
da discursividade de Os miseráveis? Quais os efeitos de sentidos advindos dessas inscrições?
Estaria o preso, depois de cumprida a pena, realmente readaptado e pronto para ser devolvido
ao convívio social? Assim, de posse desse aporte teórico e norteado por essas questões,
objetivei encontrar respostas de modo que pudesse identificar, descrever e compreender os
efeitos de sentidos que nascem da relação interdiscursiva e ideológica presentes na
discursividade dos recortes de enunciados que demonstrem essa interdiscursividade (corpus
da pesquisa) da obra Os miseráveis de Victor Hugo. De tal modo, intentei analisar as relações
entre o discurso Literário e o discurso Jurídico, descrevendo como são construídas as
inscrições em formações discursivas na qual os sujeitos discursivos que permeiam a parte
“Fantine” revelam por meio da interdiscursividade. Também busquei desvelar qual a gênese
do estigma social vivenciado pelo sujeito discursivo Jean Valjean após sua condenação e
posterior libertação pelo cometimento do furto famélico e, por fim, depreender a relação do
interdiscurso jurídico-punitivo e a produção de sentidos no devir da reintegração social do
Pai/Sr. Madeleine pela inscrição no discurso religioso. Orientado por estas questões, percebi
que, por meio da enunciação literária, Victor Hugo faz emergir lugares ideológicos e
discursivos cuja sociedade francesa, bem como o Estado construíram para todo e qualquer exprisioneiro
de sua época, levando a uma reflexão sobre o estigma social que o apenado, Jean
Valjean, carrega ao longo da obra. Afinal, tanto a sociedade francesa, quanto o estado estava
inscritos num lugar que viam num ex-apenado/prisioneiro/detento/forçado uma figura de
periculosidade social, financeira e moral. Isto me fez entender que apesar da desordem social
quanto à subsistência dos seus cidadãos, o estado francês e o ordenamento jurídico deveriam
ser respeitados em detrimento da sobrevivência humana e a pena aplicada tinha um caráter
meramente punitivo, apesar da discussão já trazida por Beccaria. Por fim, compreendi que o
único mecanismo que garantia essa prevenção especial à época foi a inscrição enunciativa no
discurso religioso, revelado na interdiscursividade do sujeito discursivo Bispo de Digne.