Introdução: Apesar de tudo o que avançamos na compreensão da importância do trabalho multiprofissional e interdisciplinar- consubstanciado na equipe de saúde - o médico continua sendo figura central para a produção do cuidado em todos os níveis do sistema de saúde, embora quase nunca apresente a adesão que se espera dele à política de construção de uma rede básica universal e resolutiva. Esse é o problema que foi ponto de partida da investigação. A formação que recebe na Escola Médica modelada pelo paradigma da Medicina científica, a sobrevivência de certo ideal de autonomia na sua prática e a resistência ideológica à proposta de implantação de um sistema de saúde público universal são as explicações mais comumente evocadas para explicar tal não adesão, ponto central e quase unânime da agenda de preocupações de quem se ocupa da gestão e gerência de serviços de saúde do SUS hoje. Objetivos: Reconhecer e problematizar elementos presentes na prática médica que contribuam para uma melhor compreensão da sua baixa adesão ao projeto de construção de uma atenção básica á saúde tal qual definida na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Metodologia: O estudo fez uso dos dados obtidos em duas investigações de caráter qualitativo. Da primeira, fez uso das entrevistas realizadas com gestores de dois municípios do ABCD paulista, na quais a “questão médica” surgiu com muita intensidade, com destaque para a difícil adesão daquele profissional ao trabalho nas unidades básicas de saúde, fato considerado pelos entrevistados como entrave importante para o sucesso da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Da segunda, de caráter etnográfico/cartográfico, realizado por cerca de dez meses em três municípios paulistas, em sete unidades básicas de saúde, o estudo fez uso de cenas cotidianas registradas pelos pesquisadores que diziam respeito à prática médica. Tais cenas podiam ser tanto quando o médico espontaneamente refletia sobre sua prática (“o médico reflexivo”), como “flagrantes” da prática médica que o pesquisador de campo ia registrando, ou comentários da equipe sobre a prática deste profissional. Uma tese construída na travessia entre duas investigações. Resultados: O caráter de travessia do estudo propiciou a construção de dois planos de observação da prática médica. No primeiro, aquele que traz o ângulo de visão dos gestores, emerge o que está sendo chamado no estudo do “médico vilão”, em função da forte responsabilidade que lhe é atribuída para explicar as mazelas da atenção básica. No segundo, aquele que observa a prática médica mais de perto, na sua realização micropolítica e cotidiana, surgem elementos para a caracterização de um profissional mais complexo, fragilizado, contraditório, vivendo as injunções de importantes transformações em sua prática profissional: um anti-herói. Conclusões: o estudo agrega novos elementos para explicar a baixa adesão dos médicos ao projeto de construção de uma atenção básica resolutiva, ao revelar como ele nem sempre tem clareza do modelo assistencial proposto, em particular o lugar reservado para a clínica na atenção básica; que tem dificuldade de integrar-se ao trabalho de equipe; que se sente excluído dos processos de gestão; que tem limitações para produzir respostas mais efetivas para as necessidades trazidas pelas pessoas, já que seu arsenal diagnóstico e terapêutico não consegue lidar com as “questões sociais” que invadem a relação médico-paciente; que identifica crescentes ameaças à sua autonomia profissional; que se vê expropriado das funções regulatórias clássicas da medicina liberal, entre outros aspectos que só podem ser percebidos quando se observa seu cotidiano profissional mais de perto. Foi essa “intimidade” com a prática médica propiciada pela abordagem metodológica adotada que permitiu caracterizar o médico como nem herói, nem vilão, mas sim humano demasiado humano. Finalmente, o estudo sugere que sejam experimentados dispositivos de conversação e escuta com os médicos capazes de alimentar estratégias para maior integração do médico ao fazer cotidiano das unidades básicas de saúde. Palavras-chave: prática médica, atenção básica à saúde, cuidado em saúde, gestão do trabalho médico, sistema único de saúde.