O rural contemporâneo é objeto de leituras variadas no que concerne à sua essencia e dinâmica. Em
Portugal, os estudos rurais retratam sobretudo um percurso de declínio e de desaparecimento, na
sequencia da desvinculacao entre espaco, atividade produtiva e populacao. Apesar de nao
assumirem relevância estatística, vao surgindo idéias e iniciativas de pessoas, grupos e/ou
associacões que advogam um regresso ao rural. Interessámo-nos nesse trabalho pelas iniciativas que
apresentam conteúdo, metodologia e intencionalidade relativamente definidos, e que tem como foco
a revitalizacao e o desenvolvimento de espacos que elas classificam como em risco de
'desertificacao humana'. Procurámos compreender os principais elementos que subjazem à
concretizacao dessas propostas e explicitar as relacões que se tecem entre os atores envolvidos, na
trama das principais narrativas presentes na sociedade; dos processos socioeconômicos e das
políticas públicas ligados aos espacos rurais. Para tanto, tentámos, primeiro, destrincar alguns dos
discursos e das acões relacionados com o principal problema apontado ao rural portugues (a
desertificacao) e com as solucões preconizadas para o resolver (que englobamos na nocao
polissemica de desenvolvimento). De seguida, procurámos compreender como essas narrativas se
articulam na concretizacao de um projeto de revitalizacao rural, através da realizacao de um estudo
de caso. O caso analisado foi o Projecto Querenca: uma iniciativa implementada numa localidade
na regiao mais a sul de Portugal (Algarve), entre 2010 e 2012. O Projecto propôs-se testar uma nova
abordagem de desenvolvimento rural, no sentido da resolucao simultânea dos problemas
enfrentados pelos espacos rurais e da diminuicao de oportunidades de trabalho para jovens
diplomados. A iniciativa ofereceu um estágio profissional a nove jovens para que, a partir dos seus
conhecimentos academicos, elaborassem projetos empresariais assentes no uso sustentável e
inovador dos recursos naturais e culturais locais. E que, desse modo, contribuíssem para a
“empresarializacao” da localidade. A análise do Projecto Querenca na optica das “redes rurais” e o
cruzamento entre discurso, representacões e acões, permitiu-nos compreender que, por um lado, a
iniciativa formou uma rede de atores com visões identicas de desenvolvimento rural: mais gente e
mais trabalho. Porém, nesse encontro, os atores nao dispõem de capacidade de agencia semelhante,
nem o que está dentro e o que vem de fora assumem igual valor. Questões que encontram paralelo,
num plano superior, nas abordagens de desenvolvimento surgidas e aplicadas nas políticas
européias e nacionais. A coincidencia entre as políticas e iniciativas como o Projecto Querenca é
patente igualmente nos valores e objetivos que expressam: a dimensao econômica enquanto motor
de desenvolvimento, o empreendedorismo, a especializacao territorial, a inovacao e a eficiencia, sao
algumas das nocões sublinhadas nesses dois campos. No contexto das mudancas no mundo do
trabalho e do apelo à diminuicao da intervencao estatal, as propostas de transformacao do espaco
rural de espaco de consumo, ou de abandono, em espaco de vida e de trabalho, parecem assim
fundar-se na migracao de populacao urbana “empreendedora” que, a partir de recursos locais
“inertes”, criará o seu proprio trabalho, preferencialmente sem se socorrer de apoios públicos, e se
converterá em ator do desenvolvimento rural.