No presente estudo, buscamos, pela descrição do sistema de formação das modalidades enunciativas, delinear configurações próprias ao funcionamento da literatura no trecento italiano e refletir sobre o modo como podem contribuir para uma abordagem dos sentidos na discursividade literária. Objetivamos, destarte, reconstituir certo modo de configuração, um funcionamento regulado por um conjunto de condições históricas, que, embora sendo algo exterior, é constitutivo dessa produção. Insere-se este estudo no quadro das análises históricas discursivas propostas por Foucault, as quais, segundo Machado (1979), poderiam ser organizadas em torno de dois núcleos: o de uma arqueologia cujo propósito era “estabelecer a constituição dos saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua articulação com as instituições” (p. X) e que respondia à questão de “como os saberes apareciam e se transformavam”; e o de uma genealogia, que tendo como questão central o porquê dos saberes, objetiva “explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que imanente a eles – pois não se trata de considerá-los como efeito ou resultante – os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente estratégica.” (p. X). Por esse viés teórico-metodológico, a leitura da Divina Comédia – nosso corpus para análise - foi realizada a partir de um dispositivo que conjugou a intersecção de três aspectos que se encontram imbricados na formação das modalidades enunciativas: o status do sujeito, os lugares institucionais de onde emergem os discursos e as posições de sujeito. A descrição desses aspectos nos permitiu desvelar os primeiros entrelaçamentos a compor a tessitura dantesca, a delimitação de pequenos sítios de formulações que servirão de base à definição do sistema de dispersão específico constitutivo da materialidade em estudo. No que concerne à questão dos sentidos foi possível constatar que a descrição dos enunciados não nos permite o estabelecimento inequívoco do(s) seu(s) sentido(s), mas ao definir as condições de existência daqueles nos instrumentalizamos para a seleção de alguns sentidos possíveis. O que se oferece é um campo de possibilidades para a validação de certos sentidos e questionamento de outros. O complexo conceitual foucaultiano nos instrumentaliza em um nível de abordagem que permite identificar os modos como cada formulação é singularizada em sua realização e, por conseguinte, as restrições às derivas do sentido. Ao resgatarmos a trama discursiva que tornou possível a existência de certos enunciados cremos ter nos aproximado da denominação atribuída por Dreyfus e Rabinow (2010) ao projeto foucaultiano: uma analítica interpretativa. Ela se conduz pelo pressuposto de que “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho.” (FOUCAULT, 2000, p. 146).