A presente dissertação propõe um estudo sobre o uso da música enquanto meio de gerar, sustentar e/ou potencializar estados alterados de consciência nos músicos que a realizam. Assim, busca-se compreender tanto a natureza psicológica de tais estados, como a função extática dos meios musicais, e a influência que esses aspectos subjetivos exercem sobre a dimensão estética da música. O estudo está
embasado, por um lado, na análise do chamado “êxtase musical” enquanto propósito da Tocata: encontro informal de improvisação coletiva que desde o início da década de 1990 tem sido realizado na casa do músico chileno Polo Cabrera, em Florianópolis (Santa Catarina, Brasil). Por outro lado, propõe-se que a função extática seja compreendida por meio de investigações histórico-culturais mais amplas, abordando práticas de diferentes épocas e grupos, como o xamanismo ameríndio e as religiões de mistério da antiguidade. Com o intuito de destacar a particularidade da função extática, propõe-se um modelo teórico dual que a concebe em termos de sua relação antagônica e complementar com a função “não-extática” da música. Para tanto, parte-
se da teoria do apolíneo e do dionisíaco em Friedrich Nietzsche para estruturar um modelo apropriado ao objetivo desta dissertação, compreendendo no uso extático um uso “dionisíaco” relativo a um estado de consciência “dionisíaco”, e, por outro lado, um uso “apolíneo” relativo a um estado “apolíneo”. A investigação etnográfica na Tocata e a pesquisa bibliográfica ficam, desse modo, enquadradas pela aplicação da terminologia apolíneo/dionisíaco, o que nos permite discernir duas hierarquias de valor distintas, embora mutuamente dependentes, dois modos de se entender a performance musical: um que a concebe prioritariamente enquanto veículo de estados alterados de consciência, e outro que a concebe prioritariamente como estrutura
sonoro-musical a ser produzida, reproduzida e/ou apresentada. Ademais, as hipóteses aqui levantadas, assim como a eficácia de tal modelo dual, são correlacionadas com as descrições fenomenológicas de Polo Cabrera – anfitrião e “guia” da Tocata – sobre o êxtase e o papel exercido pelo improviso em sua ignição.