A talidomida é um fármaco extraordinário que marcou profundamente a história da regulação e controle de medicamentos no mundo. Lançada na Alemanha, e outros países, em meados da década de 1950, como medicamento sedativo aparentemente seguro, a talidomida foi banida do mercado alguns anos depois (início dos anos 1960s), por ter sido associada a uma inédita epidemia de graves defeitos congênitos, episódio conhecido como a Tragédia da Talidomida. Após a Tragédia, a regulação de medicamentos, e as exigências para demonstração de eficácia e segurança, antes do acesso ao mercado, tornaram-se muito mais rigorosas. A descoberta fortuita, de que a talidomida era eficaz para aliviar os sintomas do Eritema Nodoso da hanseníase, em 1965, fez com que este medicamento continuasse a ser usado no Brasil até os dias atuais. Como o país tem alta incidência e prevalência da Doença de Hansen, nas regiões Norte e Centro-Oeste de seu vasto território, a talidomida é considerada um medicamento essencial no Brasil. Em que pese as tentativas de impedir o uso da talidomida por mulheres em idade fértil, vários casos de crianças nascidas com defeitos congênitos típicos do medicamento, após 1965, foram registrados, sinalizando que o controle da dispensação e uso do fármaco apresentava falhas no país. A Lei Federal 10.651/2003, e a regulamentação da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) de 2011 (RDC n°. 11/2011), proibiram a venda e dispensação da talidomida em farmácias comerciais, e introduziram outras exigências que tornaram mais rigoroso o controle da dispensação e uso da talidomida, tanto para indicações clínicas aprovadas pela agência, como para aquelas não aprovadas (uso off label).O objetivo geral deste trabalho foi investigar e analisar a dispensação e uso da talidomida para indicações não aprovadas pela ANVISA (uso off label) entre 2002 e 2017. Trata-se de estudo descritivo utilizando dados secundários, obtidos em busca realizada nos registros e arquivos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), assim como nos da Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal (SES/DF). Os resultados são expostos e discutidos em três artigos. O primeiro artigo avaliou a dispensação e usos clínicos da talidomida no Distrito Federal em 2011/12, quando a nova regulamentação passou a vigorar, bem como a dispensação e uso do medicamento 10 (dez) anos antes. Os dados mostraram que no DF, neste período, 70% das prescrições correspondiam ao tratamento da hanseníase, enquanto a indicação para tratar o Mieloma Múltiplo cresceu de 2,9% para 20,3% de todas as prescrições. A indicação de uso da talidomida para tratar o Lupus Eritematoso, por outro lado, decresceu de 13,7% (2001)
para 4,9% (2011/2012). A prescrição para as demais indicações aprovadas foi muito menos frequente, enquanto a prescrição para indicações não aprovadas foi <1,0% das prescrições em 2001 e 2011/12. O segundo artigo relatou que, no Brasil, entre 2002 e 2017, a talidomida foi prescrita para tratar uma ampla diversidade de indicações clínicas não aprovadas pela autoridade sanitária nacional (ANVISA). As autorizações concedidas pela ANVISA para dispensação da talidomida para uso off label aumentaram de pouco menos de 200 por ano, até atingir o máximo de 330 por ano em 2013, dois anos após a publicação da RDC n°. 11/2011. A partir de 2013, as autorizações decresceram progressivamente até chegar a 197 por ano em 2017. O aparecimento de análogos da talidomida (e.g., lenalidomida), e de novos medicamentos e abordagens terapêuticas para as principais indicações off label, possivelmente, explica este decréscimo. A Mielofibrose, a Síndrome Mielodisplásica, e diagnósticos relacionados despontaram como a indicação off label mais frequente da talidomida, aproximando-se de 20% das autorizações. A indicação para Síndrome Mielodisplásica foi incluída na bula do único produto disponível no país (FUNED Talidomida 100 mg comprimido) em 2018, passando então a ser indicação aprovada e não mais off label. O tratamento do Prurigo Nodularis (15,2% em 2017), e da Doença de Behçet (11,7% em 2017), foram as outras indicações mais frequentes para uso off label da talidomida. As demais indicações off label se dispersam por uma gama de doenças incluindo condições inflamatórias, vasculares, linfomas, leucemias e tumores sólidos, para as quais é plausível supor que a talidomida seja benéfica como medicamento, mas para as quais a eficácia e a segurança deste fármaco não foram adequadamente demonstradas por estudos clínicos randomizados e controlados. Os dados apresentados no terceiro artigo indicaram que a dispensação da talidomida, no DF, no período posterior à RDC n°. 11/2011 (i.e., de 2011 a 2017), aumentou muito, e foi feita predominantemente para as indicações aprovadas de tratamento da Hanseníase (>60%) e Lúpus Eritematoso (>20%). Os dados também mostraram que a dispensação para indicações off label foi inferior a 1% de todas as dispensações da talidomida no DF, confirmando o que havia sido constatado no estudo anterior realizado pelos autores. Em conjunto os três artigos mostraram que: 1) A prescrição da talidomida para indicações off label correspondeu a uma proporção pequenas das dispensações, 2) É plausível supor que o medicamento seja eficaz para esses indicações embora faltem ensaios clínicos randomizados e controlados para confirmar essa hipótese, e
3) O cadastro dos médicos prescritores, pacientes e unidades dispensadoras da secretaria estadual de saúde, aparentemente, tornou esse controle mais eficiente e confiável.