Esta tese de doutorado versa sobre a região do Parque Nacional Serra da Capivara (PNSC), sudoeste do Estado do Piauí, que conta com vasto patrimônio arqueológico e paleontológico. Nesta região, em pleno semiárido do Nordeste do Brasil, são encontrados os registros mais antigos (idade suposta de pelo menos 26 mil anos), até hoje conhecidos, da existência do homem nas Américas. A partir destes vestígios, que compreendem restos de fogueiras, ferramentas líticas, pinturas rupestres e enterramentos, associados principalmente a abrigos sob rocha, têm sido inferidos momentos ocupacionais de ampla distribuição na região, indício de que os sítios arqueológicos foram de ocupação prolongada. No entanto, pouco se sabe sobre o panorama geral do povoamento, bem como sobre a relação entre diferentes fases de ocupação e as variações climáticas da região ao longo do Quaternário tardio. De forma a tentar responder estas questões, neste trabalho foi feito o estudo estratigráfico do preenchimento sedimentar de cinco sítios arqueológicos selecionados, com recurso a análise de fácies, granulometria, petrografia e datação por Luminescência Oticamente Estimulada (LOE). Também foram processadas informações do extenso banco de dados da Fundação Museu do Homem Americano, há quatro décadas responsável pelas escavações da região, para avaliar a existência de períodos de ocupação mais intensa. Com base na análise sedimentológica dos sítios estudados, concluiu-se que o preenchimento da maioria deles foi dominado por processos sedimentares episódicos de alta viscosidade, sobretudo fluxos de detritos coesivos e torrentes trativas concentradas. Estes dois processos aparecem registrados em quatro dos cinco sítios, ainda que não numa mesma ordem estratigráfica. Outras fácies, de caráter trativo, têm ocorrência subordinada. A maioria das idades LOE obtidas no preenchimento sedimentar dos abrigos ficou no intervalo entre 60 mil anos e 400 anos. Dentro dos resultados de petrografia, merece destaque a indicação de circulação eodiagenética da água em condições vadosas, com criação de canalículos cercados por cimento filossilicático e/ou matriz coloidal remobilizada. A porosidade assim criada pode ser um fator desfavorável à preservação de vestígios arqueológicos solúveis (e.g. ossos). Por outro lado, o número expressivo de casos de preservação de vestígios in situ na região deve ter sido favorecido pela associação de dois fatores: a criação de nichos protegidos da ação dos fluxos sedimentares, nas reentrâncias dos abrigos, e o domínio na
sedimentação de alta viscosidade, os quais tipicamente têm poder de erosão limitado.
Alguns dos raros depósitos trativos, de fluidez, turbulência e poder de erosão maiores, guardam de fato quantidades mais significativa de restos de carvão (até 20%), indício de erosão e retrabalhamento de antigas fogueiras. Por fim, a análise do banco de dados de datações 14C referente a toda a área do PNSC permitiu identificar os momentos com maior número de registros ocupacionais. Comparado com dados paleoclimáticos para os últimos 30 mil anos na região, este número de registros mostra correlação positiva com a paleoprecipitação. O momento de maior número de registros coincide com o fim do Pleistoceno e início do Holoceno, quando a paleoprecipitação estimada era elevada (mais que o dobro) se comparada aos níveis atuais do semiárido nordestino. Em seguida, com a redução paulatina da precipitação até cerca de 6 mil anos atrás, que coincide com a
expansão do bioma caatinga, também diminui o número de registros ocupacionais. Nesse mesmo período, destaca-se ainda o efeito das variações climáticas na cultura das sucessivas populações que ocuparam a região: transições climáticas significativas são acompanhadas por transições artísticas e tecnológicas, por exemplo a mudança da
Tradição Nordeste para a Tradição Agreste, que coincide com a expansão do bioma caatinga e instalação do clima semiárido atual na região.