Em 1919, Freud nos apresenta o belíssimo texto em que trata do Unheimlich, aquilo que já fora familiar, há muito tempo estava oculto, e assim deveria tê-lo permanecido. Nesse texto, o autor situa o aparecimento do duplo (uma espécie de réplica de um sujeito) como uma das manifestações do (Un)heimlich. Como fenômeno psíquico, Freud o situa como produto da onipotência do narcisismo primário, nos falando também sobre a impossibilidade de se superar por completo os estágios sucessivos de desenvolvimento psíquico, ou seja, a cada avanço, há também os vestígios deixados pela etapa anterior. Na identificação do duplo como Unheimlich, o autor menciona crenças animistas de outrora, supostamente superadas pelo sujeito, mas que evidenciam seus restos através do espanto que o duplo causa. Freud faz uma breve colocação a respeito de como seria a evolução da expressão do duplo, afirmando que, com o desenvolvimento do superego (ainda não nomeado dessa forma em 1919), o duplo seria esse eu dividido, que tanto se observa, quanto é objeto de observação.
Assim, estão dadas as diretrizes para nossa investigação, que parte, naturalmente, do texto de 1919, o qual remete ao conceito de narcisismo, conceito expressivo na teoria psicanalítica: a partir do narcisismo, vamos às formações de ideais, à revisão da primeira tópica freudiana (que ainda não conta com os conceitos de ego e superego), às patologias narcísicas, ao espelho de Lacan como integrante indispensável à formação do eu, à imagem corporal unificada, etc. Podemos, assim, afirmar que Das Unheimlich nos leva a três norteadores para a pesquisa: o duplo como expressão do Unheimlich; o narcisismo como operação na qual Freud situa o fenômeno; e a literatura como campo privilegiado de aparição do duplo. Freud nos dá uma breve pista de como o duplo evolui (pela constituição egoica), mas é através de Otto Rank, em sua obra de 1914, (mesmo ano em que Freud publica Introdução ao Narcisismo) que vemos o tema aprofundado. Rank, assim como Freud, recorrem de modo abundante à literatura para descrever o duplo. Hoffman, Poe, Dostoiévski, por exemplo, nos ajudam a entender o fenômeno, que tem sua expressão notoriamente em voga no século XIX. A forte presença da literatura aponta para a estética em que o duplo mais se encaixa, a estética romântica, e para a questão sobre como a literatura, ou as artes de modo mais amplo, pode interrogar a psicanálise. Também a literatura contemporânea integra este trabalho de pesquisa, a partir da qual analisamos como essa ‘modalidade atual’ de duplicidade do sujeito pode dar indícios sobre os modos de subjetivação atuais e a relação do sujeito contemporâneo com o conceito de narcisismo.