Este estudo investiga os modos emergentes de mobilização social engendrados em ambientes digitais e o seu caráter acontecimental. A intensificação do processo de midiatização da sociedade aponta para a interpenetração entre os campos sociais, cujo funcionamento é atravessado por lógicas de uma cultura midiática (FAUSTO NETO, 2008), além de reconfigurar as dinâmicas e práticas sociais e instaurar uma nova ambiência, ou seja, um novo modo de presença do sujeito no mundo (SODRÉ, 2002). Os acontecimentos na sociedade em vias de midiatização também se modificam e encontram nos ambientes digitais novos espaços para o seu desenvolvimento e sua constituição discursiva. Esses acontecimentos têm sua existência ligada à natureza digital das plataformas em que emergem. Partindo do enfoque conceitual que considera as transformações da sociedade frente ao processo de midiatização e entendendo que os acontecimentos também são modificados por esse contexto, objetivamos compreender, descrever e analisar como esses acontecimentos midiatizados são construídos. Para tanto, nosso objeto empírico é a produção discursiva acerca da mobilização Eu não mereço ser estuprada (ENMSE), que nasce a partir de um protesto anti-estupro articulado, sobretudo, por atores em redes sociais digitais. Esses atores, por meio de distintas e singulares estratégias discursivas, investem em interações a fim de visibilizar suas ações, se conectar com quem partilha desse mesmo espaço digital e produzir suas próprias interpretações acerca do acontecimento. A metodologia desta pesquisa se desenvolve como um estudo de caso com enfoque midiático-comunicacional (BRAGA, 2008; FORD, 1998), em que utilizamos as técnicas de mapeamento online e observação encoberta não participativa (JOHNSON, 2010) para a coleta de dados. Para a leitura desse material, inspiramo-nos na análise semiológica proposta por Verón (2005), Pinto (2002) e Peruzzolo (2004). Ao final, o estudo permitiu identificar cinco fatores que atravessam o acontecimento midiatizado por meio de distintas lógicas: do sistema científico, do sistema midiático, do ator Nana Queiroz, das redes e dos atores sociais. Cada um desses âmbitos produz lógicas que impulsionam a produção discursiva que constitui o ENMSE. A análise do caso sinaliza que é impossível marcar um ponto que concentre a autoralidade do acontecimento. A referência de inteligibilidade do acontecimento deixa de pertencer a campos sociais já legitimados e passa a ser dinamizado por processualidades tecnodiscursivas que se abrem a diferentes fluxos, deslocando o protagonismo da ação de uma única instância. Por circular na ambiência midiatizada, o acontecimento vai se constituindo por meio de fragmentos e descontinuidades, acoplando lógicas de sistemas diversos, que se afetam e geram derivações, com sentidos que fogem às trajetórias da circulação midiática discursiva tradicional.