Ainda que não se disponha de dados precisos que demonstrem o número de
usuários, a Terapia Nutricional Enteral (TNE), especialmente por meio de sonda nasoenteral
(SNE), é frequente em hospitais. Essa terapêutica é indicada a pacientes em risco de
desnutrição ou desnutridos, mais de 50% dos pacientes hospitalizados, e seu emprego
contribui para melhores desfechos clínicos, redução no tempo de internação, da mortalidade e,
consequentemente, dos custos aos sistemas de saúde. Trata-se de uma terapia de alta
complexidade, que exige cuidados estritos, a fim de minimizar os riscos para complicações
que podem ocorrer em diferentes etapas do processo. Entre as mais temidas estão as
complicações mecânicas: posicionamento inadequado da ponta distal da sonda, aspiração da
dieta, lesões de mucosa nasal, tração e a obstrução da sonda, estes dois últimos mais
recorrentes. Complicações mecânicas podem produzir eventos adversos graves, incluindo o
óbito. Conhecer o quanto ocorrem, em que momentos da hospitalização e os fatores
associados pode permitir o planejamento particularizado de cuidados, para além das Boas
Práticas da Administração de Nutrição Enteral e de rotinas assistenciais. Objetivo: Três
objetivos gerais foram elaborados para nortear a presente tese, sendo eles: avaliar a incidência
e os fatores de risco para complicações mecânicas relacionadas à Terapia Nutricional Enteral
por sonda nasoenteral; avaliar o tempo decorrido até a primeira complicação mecânica
relacionada à Terapia Nutricional Enteral por sonda nasoenteral e, analisar os desdobramentos
clínicos em pacientes com e sem complicações mecânicas relacionadas à Terapia Nutricional
Enteral por sonda nasoenteral, com seus respectivos detalhamentos em objetivos específicos.
Método: trata-se de uma dupla coorte prospectiva, cujos dados são oriundos de um estudo
matriz que derivou dois ensaios clínicos e duas teses de doutorado. O estudo matriz foi
aprovado quanto aos seus aspectos éticos e metodológicos (CAE: 63247916.5.0000.5327) e
foi cadastrado no Clinical Trial (NCT03497221). Durante os anos de 2017 (período 1) 2018 e
2019 (período 2), foram coletados os dados de pacientes, maiores de 18 anos, usuários de
sonda nasoenteral, internados em duas das enfermarias de pacientes clínicos e duas
enfermarias de pacientes cirúrgicos de um hospital universitário de grande porte no sul do
Brasil, certificado pela Joint Commission International. Na ocasião, uma equipe foi
previamente capacitada e a concordância entre observadores foi avaliada. Todas as coletas de
dados deram-se de modo prospectivo, utilizando-se formulários eletrônicos elaborados pelas
autoras, empregando-se a plataforma Google Forms®. Para a presente tese, foram integrados
os dados de ambos os períodos, aos quais chamamos de Coorte 1 e Coorte 2, caracterizando o
estudo de dupla coorte. A análise dos dados respeitou as características e a distribuição das
variáveis. Variáveis contínuas foram submetidas ao teste de Normalidade (Shapiro-Whilk).
Aquelas com distribuição normal foram expressas por meio de média e desvio padrão,
enquanto as demais foram expressas por mediana e seu intervalo interquatil. As variáveis
categóricas foram expressas por números absolutos e relativos. Para avaliar as incidências das
complicações foi utilizada a incidência cumulativa [(número de eventos/total de pacientes em
risco) * 100] e a densidade de incidência [(número de eventos/total de pacientes/dia em risco)
* 1000]. Inicialmente, realizou-se a análise univariada, obtendo-se o risco bruto para os
desfechos. A seguir, procedeu-se a análise multivariada, onde todas as variáveis cujo palor-p
na análise univariada foi <0,20 foram incluídas na modelagem. Além dessas, outras variáveiscitadas na literatura como de risco foram incluídas. Foram removidas do modelo
primeiramente as variáveis de maior valor-p, observando-se os testes de ajuste de cada
modelo. Empregou-se o modelo de Regressão de Azares Proporcionais de Cox e Equações de
Estimativas Generalizadas (GEE). O nível de significância adotado para sustentação das
variáveis no modelo final foi de 5% (p≤0,05) e as análises foram realizadas no programa
SPSS versão 20.0. Adicionalmente, foi utilizado o método de Kaplan-Meier para a estimação
do tempo até a ocorrência do primeiro evento. Foram procedidas modelagens estratificadas
por tipo de complicação mecânica (tração ou remoção e obstrução da sonda). Também foram
feitas análises levando em consideração o número de pacientes e pacientes/dia (total de
observações). Eventos infrequentes foram descritos por meio de estudo de caso,
exclusivamente. Resultados: Foram acompanhados 494 pacientes, totalizando 3.676 dias de
observação. Os participantes tinham em média 65,1±14,1 anos, eram na maioria do sexo
masculino (56,1%) e com baixa escolaridade (74,8%). A maior parte necessitou de internação
em decorrência de neoplasias (28,9%) e por condições neurológicas (28,5%) e teve indicação
da SNE por rebaixamento do sensório (36,4%). Uma parcela menor de pacientes (16%) já
utilizava sonda antes da internação. As complicações mecânicas mais frequentes foram a
tração (33%, ou 74 a cada 1000 pacientes/dia) e a obstrução (3,4%, ou 6,5 a cada 1000
pacientes/dia) da sonda nasoenteral. Já o posicionamento inadequado da ponta distal da sonda
foi registrado em epanas um paciente (0,2%), assim como o sangramento da mucosa nasal
(0,2%). A aspiração da dieta não foi documentada. Os fatores de risco independentemente
associados à tração foram a história prévia de Acidente Vascular Cerebral (AVC) (HR: 1,69;
IC95%: 1,09 – 2,64; p = 0,020), maior pontuação na Escala de Coma de Glasgow (RR: 1,09;
IC95%: 1,03 – 1,15; p = 0,002) e maior idade medida em anos (RR: 1,02; IC95%: 1,00 – 1,04; p
= 0,049). Por outro lado, a condição de neoplasia prévia à internação (HR: 0,61; IC95%: 0,42 –
0,89; p = 0,011) e a prática da medida externa da sonda (RR: 0,89; IC95%: 0,79 – 0,99; p =
0,046) foram protetoras para ocorrência do desfecho. Já para as obstruções, o uso de sonda
prévio à internação (HR: 3,56; IC95%: 1,31 – 9,66; p = 0,013) e a prescrição de opioides via
sonda (RR: 6,09; IC95%:1,37 – 27,2; p = 0,018) foram fatores independentes de risco. Ainda,
demonstrou-se que com o passar dos dias o risco para tração ou retirada da sonda diminuiu,
enquanto o risco para obstrução da sonda aumentou. Por fim, os pacientes que
experimentaram a tração ou obstrução tiveram mais pausas na dieta e maior tempo de
internação. Conclusão: Ainda que alguns pacientes tenham cursado com os eventos de tração
ou retirada acidental e obstrução da SNE, as incidências mantiveram-se abaixo do limite
recomendado para esses indicadores de qualidade. Mau posicionamento da ponta distal da
sonda e sangramento da mucosa nasal foram raros (um caso cada) e sem repercussões clínicas
para os pacientes. Nenhum episódio de aspiração da dieta foi registrado. Maior atenção deve
ser dada a pacientes com AVC prévio à internação, maior pontuação na Escala de Coma de
Glasgow e maior idade (medida em anos), na perspectiva de risco de tração ou remoção
acidental da sonda. Por outro lado, ainda que de modo não totalmente compreendido por nós,
pacientes com neoplasia mostraram-se de menor risco tração ou remoção da sonda. Também,
o cuidado de medir o comprimento externo das SNE, implementado pela instituição visando
aumentar a segurança dos pacientes em TNE, mostrou-se capaz de reduzir o risco para tração
ou remoção da sonda. Atenção especial também deve ser dada aos pacientes que já utilizam a
sonda há mais tempo e que recebem opioides, pois esses fatores aumentam o risco para as
obstruções. Também, o risco para tração e retirada é maior no início do período de uso da
sonda, o risco para obstrução aumenta com o passar dos dias. Ainda, a presença de ambas as
complicações mecânicas promoveram maior número de pausas na dieta e maior tempo de
internação, justificando-se a identificação dos fatores associados aos desfechos, para que as
equipes possam implementar e intensificar medidas específicas, ao longo dos dias,
particularizadas ao perfil de cada paciente.